quarta-feira, agosto 23, 2006

por falar em Afrodite [ou de como os gregos têm a mania de desvendar os desfechos no início das obras]

«Poderoso e não de todo desconhecido é o meu nome entre todos os mortais e no céu: chamo-me a deusa Cípris. Respeito todos os que vêem a luz do sol entre o Ponto e os limites do Atlas, mas derrubo os que me desprezam. Pois também isto é próprio da raça dos deuses: sentimo-nos gratificados ao sermos venerados pelos homens. Mostrarei muito em breve a verdade destas palavras.

Hipólito, o filho de Teseu, é o único de entre os cidadãos desta terra de Trezena que se refere a mim como a pior das divindades. Despreza a prática do amor e recusa o casamento, reverenciando, antes, Artémis, a filha de Zeus, que ele considera a melhor das divindades, tendo encontrado, na caça, algo de mais importante que um convívio mortal. Não é isto que eu levo a mal; por que razão haveria eu de me importar? Mas ainda hoje castigarei Hipólito pela forma errada como procedeu em relação a mim. Há muito que está tudo em andamento: não preciso de me esforçar muito…

Quando saiu de casa para assistir às cerimónias dos sagrados mistérios, Hipólito foi visto por Fedra, a bem nascida esposa de seu pai, que foi tomada por vontade minha, por um amor avassalador. E antes de regressar para esta terra de Trezena, apaixonada por um amor ausente, mandou contruir um templo a Cípris. Doravante dir-se-á que foi por intermédio de Hipólito que a deusa recebeu um trono. Teseu navega de seguida com a sua esposa para esta região, onde permanecerá exilado. Mas agora, a desgraçada, gemendo por ter sido ferida pelos ferrões do amor, definha em silêncio, sem que ninguém, lá em casa, tenha consciência da sua doença.

Mas não é assim que este amor tem de acabar, pois mostrarei o assunto a Teseu, de forma a que fique tudo bem claro. E o pai do jovem Hipólito, que é meu inimigo, haverá de invocar três vezes Poseídon, o soberano marítimo, para que o filho seja morto por sua própria vontade. E Fedra, apesar de se manter honrada, morrerá na mesma. Não farei caso do seu mal, não vá este ajuste de contas com os meus inimigos não ser no meu interesse.

Nesta altura, Hipólito está na caça com o seu numeroso séquito, venerando com hinos a seusa Artémis, numa selvajaria de gritos lancinantes. O que ele não sabe é que, enquanto contempla a luz derradeira, foram já abertas as portas da morte.»

Prólogo da tragédia Hipólito, de Eurípides


1 Comments:

Blogger Salvador Daqui said...

reclamo o exclusivo!

24 agosto, 2006 06:03  

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