domingo, novembro 19, 2006

«O meu encontro com Landru

Conheci Henri num dia de Maio de 1916, num restaurante de Montmartre, em belíssima companhia.

Ela ostentava uma abundante cabeleira ruiva e um queixo malicioso, ele era um careca com grandes barbas negras. Ela tinha no máximo trinta e cinco anos, um vestido verde-esmeralda e um riso de pássaro exótico que ressoava a propósito e a despropósito, mas sobretudo a despropósito. Ele tinha cinquenta anos bem medidos e o sorriso circunspecto do homem cultivado que controla os seus actos. Os clientes habituais sorriam ao espreitá-lo pelo canto do olho, persuadidos de estarem diante de um burguês à beira do adultério, com uma bailarina em fim de carreira; eu, pela minha parte, apostava mais numa viúva de guerra folgazona ou aliviada e num celibatário por necessidade, afectado por uma tara secreta, provavelmente uma doença vergonhosa, humilhante ou com marcas disformes.

Chegara o momento da sobremesa e o restaurante tinha quartos no mesmo andar. Os vizinhos de Henri sussurravam sem o perder de vista; esperando o desenlace antes de se irem embora.
O empregado sentiu-se à vontade para sugerir a Henri a conclusão do repasto com uma taça de champanhe, "o vinho dos amantes para as sestas que borbulham". Tive a impressão de que a sala ia aplaudir, mas entretanto instalou-se um grande silêncio quando, com uma voz sem timbre, branco como a cal, ele replicou: "A conta, por favor, e não diga mais nada." O sorriso do empregado desapareceu. O instante eternizou-se. Depois, a amiga pegou no seu copo de vinho carrascão, levantou-o bem alto e atirou o conteúdo à cara de Henri; fugindo em direcção à porta, num burburinho confuso de soluços e de tacões a martelar o soalho.

"E já agora traga-me um grande guardanapo, de preferência em ninho de abelha, que absorve melhor", acrescentou ele virando-se para o empregado, enquanto ajustava os seus óculos. Estendi-lhe um lenço limpo. Ele enxugou delicadamente a camisa e, todo sorrisos, dirigiu-se à assistência: "Vejam como um homem de bem se limpa de um revés."»

BOTUL, Jean-Baptiste, Landru, precursor do feminismo, tradução de José Mário Silva, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2005, p. 24 e 25.